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Carlos Susías Rodado

Carlos Susías Rodado, presidente da EAPN Europa e da EAPN Espanha

Entrevista:

“Recomendamos que se ponha fim à era de austeridade na Europa”

Carlos Susías, presidente da EAPN Espanha, foi eleito, em 2018, para presidir à EAPN Europa, a maior rede europeia de luta contra a pobreza e exclusão social, com sede em Bruxelas, e presença em todos os países da União Europeia. Em 2014, pelo terceiro ano consecutivo, o jornal El Mundo incluiu-o na lista das 500 pessoas mais influentes, em Espanha, num campo denominado “Poder Alternativo”, direcionado para as pessoas com significativa intervenção na sociedade civil, no tecido social e em movimentos de cidadania. Sempre na vanguarda da luta contra a pobreza e exclusão social, Carlos Susías acedeu a responder a algumas questões da FocuSocial sobre o seu trabalho e das equipas que integra. “Queremos que a experiência COVID-19 seja usada como uma oportunidade para reconstruir a Europa com um coração social, com igualdade de género e uma abordagem para combater a discriminação. As pessoas devem poder exercer os seus direitos fundamentais, sem restrições ou condições. A proteção social adequada melhora o bem-estar de indivíduos, famílias, comunidades e sociedades, levando a uma melhor distribuição e acesso a bens e recursos”. No que reporta ao Rendimento Mínimo Vital, em Espanha considera ser – via o sucesso da campanha dinamizada pela rede espanhola – “a vitória do bom senso, da justiça social e da inteligência económica. Resumindo, uma vitória para todos”.
Além de abordar, de forma geral, o trabalho desenvolvido pela EAPN Europa, observa todas as propostas enviada ao Comissário Nicolas Schmit, pedindo-lhe que liderasse e propusesse uma Diretiva-Quadro sobre Rendimento Mínimo, o mais rapidamente possível, e que assegurasse que o Rendimento Mínimo constasse do programa de trabalho da Comissão Europeia.

A EAPN é a maior rede europeia de luta contra a pobreza e exclusão social, com presença em todos os países da União Europeia. Como faz o balanço destes anos na presidência, principalmente o atual, com uma pandemia a ser vivida pelo mundo e atingindo uma Europa que terá de se unir, muito mais, no combate à pobreza que já existia e a esta “nova” pobreza gerada pela COVID 19?

Na década passada, a saída da crise económica foi desigual e assimétrica, uma vez que não permitiu a recuperação de pessoas em risco de pobreza e exclusão, nem reduziu significativamente os níveis de desigualdade. Embora alguns objetivos da estratégia Europa 2020 tenham sido alcançados, é evidente que a redução da pobreza falhou na maioria dos Estados-membros. De acordo com dados do AROPE (At risk of poverty or social exclusion) antes do impacto do COVID -19, encontramos mais de 109 milhões de pessoas em risco de pobreza e exclusão social. Mulheres e outros grupos sociais, como crianças, jovens, população imigrante e minorias étnicas têm taxas de pobreza mais altas do que a média. Conforme descrito no recente relatório da EAPN Europa denominado “O impacto da COVID-19 nas pessoas em situação de pobreza e vulnerabilidade”, a pandemia afetou mais as pessoas que já se encontravam em situação de pobreza e vulnerabilidade. A avaliação estatística ainda está pendente, mas o estudo realizado mostra um agravamento da situação social, de emprego e de vulnerabilidade como resultado da COVID-19 e de algumas das medidas tomadas pelos governos que monitoramos.

 

No momento, quais são as principias frentes de trabalho da EAPN?

Diversas. Estamos, por exemplo, a trabalhar o empoderamento e a participação das pessoas em situação de pobreza e exclusão social, para atuarem na defesa dos seus interesses e no combate à pobreza, em favor da igualdade de género e da não discriminação. Com o apoio do secretariado técnico do Comité Executivo da EAPN e do Grupo de Coordenadores do Encontro Europeu de Pessoas em Situação de Pobreza, continuamos a realizar os Encontros Europeus de Pessoas em Situação de Pobreza e Exclusão Social, em Bruxelas (também replicados nas redes nacionais) que constituem o ponto alto destas ações de capacitação, alcançando, todos os anos, um nível de diálogo com as autoridades europeias, muito importante para dar a conhecer o nosso trabalho. Embora este ano, como consequência da COVID-19, tenhamos de adiá-lo para o próximo ano. Ainda, através do Grupo de Inclusão Social, realizamos estudos temáticos que analisam em profundidade as questões-chave, como o acompanhamento do semestre económico, o futuro da Europa Social, na reconstrução pós-COVID, fundos estruturais, entre outros. Nesse sentido, elaboramos anualmente o “Poverty Watch” em mais de 20 países, que nos permitem obter informações em primeira mão sobre pobreza e vulnerabilidade nesses territórios e na União Europeia (UE) como um todo, e que são essenciais para a advocacia (diálogo com as autoridades da UE e com os governos das redes nacionais da EAPN). Não esquecemos, também, o trabalho para o fortalecimento institucional e financeiro da própria rede, contando com a participação de uma ampla de vários atores.

 

Como estão a trabalhar essas questões?

Na UE, estamos a trabalhar com recomendações e propostas de curto, médio e longo prazo. A 17 de março, a EAPN enviou uma declaração ao Conselho EPSCO e, a 24 de março, enviamos uma carta aberta ao Conselho Europeu, destacando as prioridades de curto prazo como, por exemplo, a ação urgente na área da saúde, coordenada com foco na proteção dos mais vulneráveis. As autoridades nacionais devem tomar medidas imediatas e mais específicas no domínio da saúde física e mental, segurança alimentar, habitação e garantir o acesso a água potável e produtos de higiene, informação acessível, acesso gratuito a exames e tratamento para pacientes afetados pela COVID-19, garantir a proteção de comunidades desfavorecidas e grupos socioeconomicamente vulneráveis ​​durante a pandemia. Também pedimos atenção para a proteção dos trabalhadores e forma de garantir um rendimento adequado para todos, incluindo apoio financeiro para manter as pessoas no emprego, com garantia de rendimento, aumento do rendimento mínimo para fazer face aos custos adicionais e garantia de rendimento para os funcionários. Trabalhadores independentes ou com empregos atípicos que perderam e estão a perder os eus rendimentos com a crise, também necessitam de atenção/ação. E, evidentemente, não esquecemos a necessidade de proteger as pessoas em risco de pobreza, incluindo a suspensão dos despejos por falta de pagamento de rendas e hipotecas, o pagamento de contas de energia e o fornecimento gratuito e contínuo de alimentação para os mais necessitados.  Também fomos claros no que concerne à urgência de mitigar o impacto social das medidas de contenção do isolamento social e da solidão, incluindo o apoio urgente às ONGs sociais que prestam serviços de assistência e apoio e a necessidade de criar linhas de atendimento nacionais para apoio social e psicológico com vista a abordar o aumento do risco de violência doméstica e abuso, especialmente contra mulheres, em quarentena ou em condições de estado de calamidade. Todos os Estados-membros da UE devem atribuir fundos específicos a nível europeu e nacional para responder às necessidades das mulheres e jovens de grupos vulneráveis ​​e excluídos, tendo em conta as suas necessidades específicas, especialmente para lidar com a violência baseada no género e as formas de desigualdades e discriminação no acesso a cuidados de saúde, emprego, educação e habitação, que podem aumentar durante a pandemia.

A EAPN enviou, também uma carta ao Comissário Nicolas Schmit, pedindo-lhe que liderasse e propusesse uma Diretiva-Quadro sobre Rendimento Mínimo, o mais rapidamente possível, e que assegurasse que o Rendimento Mínimo constasse do programa de trabalho da Comissão Europeia. Que propostas fizeram?

A médio prazo, solicitamos a integração e a avaliação da pobreza e do seu impacto social; o reforço dos serviços de saúde pública e de segurança social de qualidade; prioridade para o rendimento mínimo adequado e proteção social; proteção do emprego, prevenção do trabalho precário e a valorização do trabalho de primeira linha. Por fim, pedimos forma de garantir que os grupos em situação de pobreza e vulnerabilidade ​​não paguem o preço da pandemia com medidas de austeridade.

Por outro lado, fizemos, também, recomendações a longo prazo, propondo uma ação da UE para uma recuperação social e verde. Entre elas, está a adoção de uma estratégia global, social e sustentável, tendo a erradicação da pobreza como um pré-requisito. Acordar sobre uma estratégia integrada da UE contra a pobreza, como objetivo e enquadramento do Plano de Ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais; implementar uma avaliação abrangente do impacto do COVID-19 na pobreza e na igualdade, com orientações específicas para os Estados-membros; estabelecer uma coordenação “forte e equilibrada” ao longo do semestre europeu e promover os direitos e o compromisso europeu de garantir um rendimento adequado por meio de uma diretiva.

Também abordamos a necessidade de garantir que o plano de recuperação da UE beneficie os pobres e vulneráveis, com uma alocação de 30% no Fundo Social Europeu (FSE); garantir a participação significativa de pessoas que vivem em situação de pobreza e organizações da sociedade civil, implementando essas mudanças nas Diretrizes de Emprego e, por fim, recomendamos que se ponha fim à era de austeridade na Europa, usando os impostos para ajudar a pagar os custos dos pacotes de resgate e recuperação.

 

Como presidente da EAPN Espanha, quais são os principais objetivos de trabalho para os tempos que vivemos?

Os objetivos são múltiplos. Estamos a analisar o impacto do COVID-19 e as medidas adotadas na iminente crise económica e social, solicitando um conjunto de ações destinadas a proteger e reforçar o Estado Providência, nomeadamente na saúde, educação e habitação. Para combater a pobreza, é necessário ter esse quadro que garanta boas condições de vida para todos e, nesse sentido, consideramos urgente a revisão das políticas de rendimento, considerando três elementos diferentes, mas que se interrelacionam: O rendimento proveniente do emprego. E o emprego tem de ser decente, como indica a Organização Internacional do Trabalho. Deve fornecer um rendimento suficiente para um nível de vida que permita o desenvolvimento pessoal e familiar. Com as atuais taxas de desemprego de longa duração e o impacto da pandemia no desemprego, é essencial fortalecer políticas ativas em favor das pessoas em maior risco de exclusão do mercado de trabalho, contando também com “contratos de reserva de mercado”. Defendemos que devem ser instituídas medidas contra o emprego precário e ultra-precário, o uso abusivo de “bolsas” e o falso trabalho independente, formatos que promovem a existência e o crescimento da taxa de trabalhadores pobres e a precariedade do emprego. Também a conciliação entre a vida familiar (de crianças e adultos) e o emprego deve ser eficaz e acessível. Estamos empenhados num sistema de pensões que permita um nível de vida adequado e, ainda, num sistema de garantia de um rendimento mínimo, na ausência ou insuficiência de rendimento proveniente do emprego, adequado e acessível, que permita desenvolver uma vida plena.

 

Quer falar-nos um pouco da vossa campanha “Renta Mínima Sí”? Considera uma vitória?

No dia 29 de maio, a EAPN Espanha celebrou a aprovação, em Conselho de Ministros, do Rendimento Mínimo Vital, medida que visa aliviar as situações de maior pobreza e desigualdade em Espanha. Com essa aprovação, deixamos de ser o único país da zona euro sem um sistema de rendimento mínimo estadual, que combate as altas taxas de pobreza existentes e beneficia 850 mil famílias em situações de vulnerabilidade social e económica (2,3 milhões de pessoas). O Rendimento Mínimo Vital permitirá que as pessoas tenham rendimento para pagar serviços básicos. Antes desta crise, em Espanha, havia 600 mil famílias sem rendimento de qualquer espécie e 2,5 milhões de pessoas viviam em extrema pobreza (com menos de 370 euros por mês).

Pessoalmente, considero que o Rendimento Mínimo Vital pode ser um forte impulso para a erradicação da pobreza severa no nosso país. É um instrumento redistributivo, de justiça social e de alta inteligência económica. Beneficia as pessoas e famílias que estão em dificuldades. São recursos que irão diretamente para o consumo imediato nos serviços e estabelecimentos locais. Através desse consumo, serão pagos impostos, com os quais uma parte desse investimento social retornará ao Estado. Em suma, é uma medida que beneficia toda a população, mas ainda há muito a fazer.

A EAPN Espanha solicitou ao Governo que o sua implementação seja facilitada, rápida e ágil para que todas as famílias e pessoas que tenham direito a esta prestação possam ter um acesso agilizado nesse requerimento. Noutro sentido, defendemos que os 1.500 milhões de euros que atualmente se encontram afetos ao rendimento mínimo nas Comunidades Autónomas, continuem a ser atribuídos a políticas de inclusão social e não canalizados para outros fins. Estamos muito atentos e empenhados nestas questões.

Entre abril e maio, a EAPN Espanha levou a cabo essa campanha de que fala, visando a sensibilização da opinião pública para a necessidade de um rendimento mínimo. Tínhamos um slogan que dizia: “Rendimento Mínimo Sim: Coloque os seus preconceitos em quarentena”. A esta campanha aderiram mais de 460 entidades da economia social e da cultura em toda a Espanha, representando mais de 28 mil organizações. Também dinamizamos dois seminários online que contaram com vários milhares de participantes virtuais e com a participação dos responsáveis ​​pelo tema no governo nacional.

Sim. Foi a vitória do bom senso, da justiça social e da inteligência económica. Resumindo, uma vitória para todos.

 

Qual é a sua visão para um mundo livre de pobreza? E, no seu entender, quais os maiores obstáculos que a luta contra a pobreza e a exclusão social enfrenta na Europa e no mundo?

Queremos que a experiência COVID-19 seja usada como uma oportunidade para reconstruir a Europa com um coração social, com igualdade de género e uma abordagem para combater a discriminação. As pessoas devem poder exercer os seus direitos fundamentais, sem restrições ou condições.

A proteção social adequada melhora o bem-estar de indivíduos, famílias, comunidades e sociedades, levando a uma melhor distribuição e acesso a bens e recursos, e desempenhando um papel importante na resposta a diferentes riscos, tais como pobreza, exclusão social, insegurança, desemprego, deficiência, entre outros . A proteção social é indispensável ao modelo social europeu e a uma boa sociedade; uma sociedade que incentiva a paz, a solidariedade social e a harmonia; uma sociedade em que as pessoas se sentem felizes. O Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE, artigo 9.º)   inclui explicitamente a garantia de proteção social adequada como um requisito da UE na definição e execução das políticas.

Resumindo, é isto: queremos fazer parte de uma Europa que contribui para um mundo sustentável, que respeita a capacidade e limites do planeta e que ajusta o seu ritmo de produção e consumo a essas limitações. Mas, ao mesmo tempo, é necessário exigir que essa reconversão implique uma redistribuição progressiva do rendimento, hoje exageradamente concentrado em pouquíssimas mãos.

A UE tem de ser uma referência mundial em termos de coesão social, no respeito pelas liberdades e pelos direitos humanos, tanto no território europeu como em todas as suas ações fora dele. Por isso, a cooperação para o desenvolvimento deve ser coerente com estes princípios no exterior: deve ser fortalecida e modernizada; os investimentos sociais, económicos e ambientais devem ser aumentados, capacitando as comunidades que recebem essas ajudas para terem oportunidade de se desenvolver de forma autónoma. As relações internacionais europeias também devem estar impregnadas dessa coerência, garantindo a manutenção da paz, a erradicação das armas e o desrespeito das ditaduras que violam os direitos humanos e obrigam a êxodos massivos das populações. Em suma, temos de estar cientes de que a coesão social é o motor do desenvolvimento e não sua consequência. E temos, por dever, de agir em conformidade.

Dezembro 18, 2020
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