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Patrícia Reis

“Sou uma deslumbrada pelo ser humano na sua totalidade; quer pelas enormidades de que é capaz, quer pelos milagres que também empreende”  

À margem com…
Patrícia Reis
  • Um livro que recomendes?
    Todos os livros da colossal Maria Teresa Horta. Da poesia à prosa. As Luzes de Leonor, por exemplo, é uma obra-prima, levou 14 anos a escrevê-lo. Além da importância de toda a sua obra, estamos a falar de uma mulher singular e porventura a mulher mais saudavelmente feminista que eu conheço. E ainda assim, com tudo o que isso representa, no nosso país, assume o seu lugar, com muita dignidade, apesar de muitos não lho reconhecerem. É uma mulher brilhante.
  • E um filme?
    A Vida Secreta da Palavras,  da Isabel Coixet, mulher incrível que, há muitos anos,  descobri com esse filme. Recomendo a toda a gente. É um filme sobre o entendimento. E, numa vertente bem diferente, Toy Story porque gosto muito de filmes de animação e ninguém pode viver sem o Buzz.
  • Um local que te convide?
    Roma. Roma é recorrente na minha vida. Vou e fico sempre no mesmo hotel. Adoro Roma, é um apelo constante e como já fiz todos os circuitos turísticos, vou lá só para passear pelas ruas e comer gelados e ficar nas praças a observar as pessoas. Vou a Roma e sinto-me em casa. Gosto muito.
  • Um pintor que te inspire?
    Graça Morais. É uma pintura que sempre se focou muito no vigor das mulheres, nomeadamente as transmontanas e eu identifico-me muito com a força que emana da sua pintura. É uma pintora maravilhosa, uma mulher muito inspiradora.
  • Um blog, jornal ou revista que leias sempre?
    Leio jornais, nacionais e internacionais. O El País, por exemplo, tem a melhor revista do mundo ao fim de semana. Sem jornalismo, não há democracia. Temos de valorizar muito o bom jornalismo.
  • Um provérbio ou um poema? Qual?
    Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. Toda a vida disse isto; toda a vida ouvi isto ao meu tio-avô.
Entrevista:

Levou um ano em pesquisas e conversas e quatro anos para escrever o livro. Escreveu a história como a imaginou e foi cortando até reduzir 400 páginas a metade. As Crianças Invisíveis (2019) abre com uma dedicatória, ao filho mais novo e, depois, segue-se um verso de Herberto Helder;  e termina com vidas para lá de um portão que se abre para o desconhecido, com um abraço que se adivinha infinito e com nomes, finalmente, desvendados. Pousamos o livro no colo e respiramos fundo, porque uma narrativa aberta pode ser o que quisermos, ainda que a dor que acompanhamos e fizemos nossa, não nos abandone num ápice.

Este é um romance “escrito no osso”, como diria José Cardoso Pires, ou seja, sem “rodriguinhos”. Só o essencial, palavras nuas, escolhidas uma a uma, para nos falar sobre adoção, maus-tratos e abandono. Patrícia Reis, escritora e jornalista, conta-nos, com mestria, a saga de M. uma criança que cresce numa instituição de acolhimento e é por diversas vezes devolvida como se fosse uma mercadoria que não serve. Ao seu lado existem outras crianças, especialmente S. com quem cria, acreditamos nós, leitores, uma amizade indestrutível e existe, ainda, Conceição, a assistente social profissionalíssima, que faz tudo por aquela criança e, no entanto, falha com a sua própria família.

Não. As Crianças Invisíveis não é uma reportagem jornalística. É um romance. Sim. Romance. Teve, por parte da autora um grande trabalho de pesquisa, de idas ao terreno, de validação de fontes e compreensão de processos, mas é um romance.  É aí que também reside a capacidade e o talento de um escritor. Acredita-se em M., na sua existência, no seu sofrimento, em todos os detalhes dos seus gestos, no seu percurso de criança disponível para adoção, enfim, em todas as voltas tortuosas para encontrar uma família. Da realidade apenas saíram fios (ideias) para a escrita de tramas imaginados, caminhos ficcionados – “eu não tenho ali nenhuma história verdadeira; logo não é jornalismo” – diz Patrícia Reis. E acreditamos, tanto mais quanto se lhe conhece a obra e – essa sim, real – a capacidade inata para nos contar histórias.

Laborinho Lúcio, apresentou o livro em Lisboa. Miguel Carvalho, jornalista, apresentou-o no Porto, em setembro do ano passado, e anotamos: “Ironia das ironias, este é um livro sobre a invisibilidade num tempo exposto. (…) As histórias deste livro questionam o nosso lugar no mundo, nas dinâmicas de uma relação. Questionam o nosso exercício de paternidade, o nosso lugar no amor, numa família, ou no que entendemos que eles são. É um livro sobre o que somos sem saber: clientes e audiências. Sempre dispostos a uma lágrima fácil e permeáveis à insensatez. Vemos, ouvimos e lemos. Mas quanto disso queremos mesmo saber, nas suas profundezas, essas onde moram nomes, rostos, histórias invisíveis à superfície?”.

As Crianças Invisíveis levam-nos a uma geografia emocional agreste, a um território psicológico muito duro e, tantas vezes, incompreensível. Creio ser impossível esquecer os protagonistas desta história que nos leva, sem dó nem piedade, à vida de crianças que, tal com M., não esperam ser felizes. E só isto, chegaria para nos derrubar qualquer esperança.

Patrícia Reis nasceu em Lisboa. Começou a sua carreira de jornalista n`O Independente e estagiou na revista norte-americana Time.  E uma vez jornalista, para sempre jornalista apesar de hoje as redações não fazerem parte do seu quotidiano. Estreou-se na ficção em 2004, com Cruz das Almas, a que se seguiram os romances Amor em Segunda Mão; Morder-te o Coração, que integrou a lista de 50 livros finalistas do Prémio Portugal Telecom de Literatura; No Silêncio de Deus; Antes de Ser Feliz; Por Este Mundo Acima; Contracorpo e A Construção do Vazio. A novela “O que nos separa dos outros por causa de um copo de whisky”, ganhou por unanimidade o Prémio Nacional de Literatura da Fundação Lions. Publicou, em 2016, o romance Gramática do Medo, escrito em parceria com Maria Manuel Viana.  É ainda autora de biografias, de um romance fotográfico e de livros infantojuvenis.

Quem a conhece sabe que, com certa frequência, pergunta a si mesma e aos outros: “Vais morrer; só não sabes quando. Queres mesmo perder tempo com isso?” e, desta forma, desmobiliza o ímpeto para a perda de tempo com questões menores. E o tempo é algo que valoriza muito; seja para trabalhar ou para se dar ao luxo do “dolce far niente” que pratica, com frequência em Roma, cidade que a seduz. É fã de Agustina e teve o privilégio de privar com ela e de guardar momentos na sua companhia tal como, por exemplo, também os guarda com Eduardo Prado Coelho, a quem ainda hoje, apesar da sua ausência, escreve cartas comoventes e irónicas a contar a vida. Tem “profunda admiração por Maria Teresa Horta, “uma escritora colossal”, de quem é amiga.  E ser amiga de Patrícia Reis é um risco pleno de afetos indizíveis. Porque, mesmo não acreditando e não sabendo rezar, pode fazer uma promessa por uma amiga em apuros.

De uma generosidade ímpar, é exímia comunicadora e dona de uma imensa capacidade de trabalho; arguta, sedenta de conhecimento, foi estudar religiões porque é “encantada por pessoas” e gosta de, na medida do possível, as compreender, de interiorizar o mundo à sua volta. A aprendizagem é uma espécie de desígnio na sua vida. Patrícia Reis, assume, desde 2000, a edição da revista Egoísta, a publicação multipremiada que quer se concorde ou não “reúne, literatura, história e arte, sem filtros, do Portugal, pós-25 de abril”. É uma revista documento e objeto colecionável. Não é mulher de muitos receios, mas está atentíssima ao tempo que vivemos. “É um tempo demasiado veloz, de pouco pensamento e temo, também, que a pandemia, agudize o nosso individualismo. Vivemos um tempo dificílimo” diz, acrescentando: “temos de ser perseverantes e não deixar que a dignidade seja mais uma palavra no nosso vocabulário. Tem de cada vez mais, ser uma atitude, um comportamento, uma linha por onde seguimos”.

Qual foi o impulso inicial para escrever “As Crianças Invisíveis”?

Foi ter conhecido um casal que devolveu uma criança no período de pré-adoção o que me fez sentir francamente chocada. Temos todos a mania que somos bonzinhos, somos todos altruístas, ninguém é racista, vestimo-nos todos bem e somos todos inteligentes. É uma presunção do ser humano. E, na minha enorme arrogância, prontifiquei-me ao julgamento imediato, achando o recuo daquele casal, de uma crueldade sem limites ainda mais sendo conhecedora, como todos, que há imensa dificuldade, pela demora do processo e não só, na adoção de crianças, em Portugal.

 

Foi então esse episódio que fez o “clique” para que escrevesses um romance tão lúcido?

O tema da adoção não é novo para mim. Eu explico: sempre pensei adotar uma criança e, na altura, acabei por não o fazer por questões de saúde. É o que é. E também porque tenho amigos que adotaram. E refiro-me a adoções feitas por casais heterossexuais, homossexuais e famílias monoparentais. É um universo que existe à minha volta e para o qual sempre me senti sensibilizada. Depois, vão surgindo, claro, por força de estar muito atenta à realidade que me rodeia, todas as questões reais e hipotéticas que surgem sem esforço e nos oferecem novos imputes para a escrita. E, num outro momento, comecei a imaginar o que todas estas situações poderiam ser noutras perspetivas…

 

Do ponto de vista institucional, por exemplo?

Sim. O que se passa dentro destas instituições que acolhem crianças para adotar? Quando é que uma criança tem consciência de que está disponível para ser adotada e qual o impacto disso na construção da sua identidade? O que mais me interessa são as pessoas e o seu processo individual de construção de identidade. Vou sempre desaguar aí. Sou uma deslumbrada pelo ser humano na sua totalidade; quer pelas enormidades de que é capaz, quer pelos milagres que também empreende. E eu procuro sempre ver o lado mais incrível do que o lado mais infeliz. Isto tudo para dizer que eu não tenho ali nenhuma história verdadeira; logo, não é jornalismo. É um romance. E é preciso dizer isto.

 

Sim. Mas é um romance de onde se sai convencido de que tudo aconteceu assim…

Há um pormenor que é verdadeiro: o do casal que devolve a criança com a fotografia dentro da mala…tudo o mais é inventado. Aliás, o livro sai e um ano depois acontece o abandono de uma criança recém-nascida que salta para todos os órgãos de comunicação social. Este episódio real, do nosso quotidiano, no nosso país, prendeu a atenção de todos. A criança que é abandonada no lixo e, num instante, estava em todos os noticiários. Ver ali alguma coisa da história que contei, foi um bocado perturbador, confesso.

 

O mundo da adoção e as crianças institucionalizadas são realidades que demonstras conhecer bem. Talvez por isso, também, fiquemos, depois de ler, convencidos da veracidade desta história

Como disse, fiz pesquisa, tentei munir-me de informação. Em Portugal, há 60 mil crianças em instituições. É o estádio do Benfica cheio. Se fecharmos os olhos e imaginarmos este cenário dói muito. E mais uma vez, lá está, não nos imaginamos a abandonar uma criança, a devolvê-la e vamos por aí, conduzidos pelo nosso ego e, sem conhecermos a realidade, mais facilmente caímos na tentação de nos colocarmos num lugar de benevolência que talvez nem sequer exista em nós… Eu, hoje, cinco anos depois de escrever o livro, não julgo quem entregue uma criança. Não julgo sem conhecer. Sem perguntar o que aconteceu. Eu sei que isto é polémico. E também sei que há famílias que percebem que cometeram um enorme erro e há crianças que percebem que o percurso delas é melhor dentro da instituição do que numa família. Seja a família biológica seja a família putativa…
Essa afirmação abala a ideia mais romântica e generalizada de família. A família que tudo suporta…
Mas, muitas vezes, não suporta. É assim a vida. A capacidade, a resistência, a enorme vulnerabilidade dos seres humanos… daí que eu faça sempre, por mais terrível e desumana que a ação nos pareça, a pergunta que se impõe: sim, mas o que é que aconteceu?

 

Essa é a pergunta que a Conceição (personagem do livro) faria… Ou seja, é uma pergunta recorrente dos assistentes sociais, dos psicólogos (entre outros profissionais) e que todos devíamos fazer mais?

Sem dúvida. Somos muito levianos a julgar e julgamos sem estar em posse do maior número possível de dados. Deveríamos, com mais facilidade, colocarmo-nos no lugar do outro e, muito importante, compreender a situação no seu todo. Seja ela qual for. Sempre tive isto comigo. Mas é isso, é o meu fascínio pelo ser humano. E após o tanto que já estudei não me canso de aprender mais…gosto muito de perceber como as pessoas chegam aquele lugar, aquela reação, aquela decisão, aquele comportamento. Tal como aconteceu com as religiões, quando as estudei. Para mim, são tão cativantes que não descansei enquanto não fui estudar a sua génese; tentar perceber, mais uma vez, a necessidade tão humana de acreditar em algo…é sempre o tecido humano e a geografia emocional que me faz sair do lugar mais confortável e empreender a busca pelo conhecimento.

 

No que reporta à pesquisa para este livro, como foi o processo?

Convém dizer que em campo esteve a Patrícia Reis escritora e a Patrícia Reis jornalista. Esta última fez diversas listas, de instituições, ministérios, Comissão de Proteção de Menores, etc, etc. A Patrícia escritora foi diretamente falar com o professor Laborinho Lúcio, pessoa que admiro imenso, conhecedor privilegiado deste universo e por quem tenho um respeito sem fim. Como ele diz e eu concordo temos uma amizade de 32 anos assente num profundo sentimento de lealdade um para com ou outro e isto é inestimável. Depois também falei com uma psicóloga que gere uma instituição, aqui às portas de Lisboa; falei também com uma juíza do tribunal de menores e, após diversas conversas, percebi que me faltava sentir o pulso a esta realidade. Foi aí, depois de visitar espaços, olhar para os miúdos, ver onde dormiam, onde comiam, onde estudavam e brincavam, enfim, onde viviam que me senti apta a escrever esta história.

 

Mas foi necessário vivenciar, de algum modo, o dia-a-dia de uma instituição que acolhe crianças?

As instituições são todas diferentes entre si, por razões várias. Também aprendi isso. E foi aí que disse a mim mesma: eu não quero fazer um retrato da realidade, como se fosse uma híper reportagem do jornalismo narrativo, à americana. Eu optei por fazer uma ficção porque o que me interessa, sublinho, é a criação da identidade. E, ainda, o meu interesse por explorar o facto de o espectro emocional não ter género.

 

Sim. Levamos quase todo o livro sem saber se M. é menino ou menina. E num momento achamos que se trata de um rapaz e noutro já estamos a acreditar que é uma rapariga…

Todos nós sentimos dor, alegria; todos nós somos capazes do melhor e do pior; morremos e ressuscitamos; construímos e destruímos; todos nós nos interrogamos sobre a sexualidade; todos temos vergonhas; todos nós efabulamos e temos pensamentos terríveis. E isto não tem género. O amor não tem género.

 

E como foi fazer esse exercício de escrita?

Foi difícil. Nunca mais o tenciono fazer (risos). Abençoada língua inglesa! Para tentar mostrar que há muitos preconceitos, até impregnados na linguagem, e tentar mostrar que o espectro emocional é um espaço livre de ideias pré-concebidas. Em vez de dizer M. está orgulhosa; dizer M. sentiu orgulho. Levei toda a escrita a exercitar este registo e, claro, há nisto uma certa dificuldade. No início custou-me muito, depois acabou por fluir.

 

Que estereótipos mais te incomodam?

Os de género, evidentemente. Mas todos, de forma geral, me incomodam. Eu, por exemplo, toda a vida vivi com o estereótipo de ser “a loirinha”. Portanto senti na pele toda a panóplia de ideias pré-concebidas que gravitam em volta do ser-se loira, mulher; logo pouco inteligente. E, como sabes, sou casada com um negro e mesmo que não fosse, também me incomodam todas as ideias pré-estabelecidas acerca das diferentes etnias. No que toca ao meu casamento, eu e o meu marido já vivemos situações verdadeiramente tristes e caricatas. Na nossa geração, os casamentos mistos não são tão vulgares. Esta nova geração, deste ponto de vista, já é diferente, mistura-se mais, com a naturalidade inerente, ou que eu acredito ser inerente, ao ser humano.

 

Estás “naturalmente” atenta às questões do racismo em Portugal…

Racismo, em Portugal? Somos um país de brandos costumes, dizem…e não é verdade. O racismo em Portugal é como a violência doméstica: existe. Temos de o dizer claramente e combatê-lo. Fingir que não existe é que se revela a pior das estratégias. E não é honesto. Apesar de me custar muito a compreender as atitudes racistas eu sinto-as na minha vida. Há uma discoteca em Lisboa, que vetava a entrada a pessoas negras, mas tinha autorização para que deixassem entrar o meu marido. Soubemos disto e nunca lá pusemos os pés! É um absurdo e é preciso dizê-lo. Pertenço a uma família multiétnica: tenho um avô que casou com uma indiana, um tio que casou com uma japonesa; outro que casou com uma angolana; à mesa éramos muitos, de muitas cores e traços e cabelos diferentes. Também talvez por isso seja tão aberta à diferença e tenha a multiculturalidade como uma mais valia, um enriquecimento pessoal. Mas, infelizmente, o racismo é uma dura e tristíssima realidade. Há um exercício que podes fazer e que vale a pena fazeres: quais dos teus amigos entregariam a Anne Frank e quais a protegiam? Vais gerar debate e chegar a muitas leituras. Mas tens de perceber isso. E tens de perceber que, ainda hoje, viver exige muita coragem.

 

E a violência doméstica, que já referiste, em crescendo…

E o que veio ao de cima, agora, com o confinamento. As casas-abrigo, que albergam esta vítimas encheram. Foi necessário o reforço no alerta; surgiram mais campanhas, incitando a usar as mensagens escritas, para quem não pudesse falar. E atenção, falo de homens e de mulheres. A violência doméstica está muito centrada nas mulheres, mas também existem homens violentados.

 

Voltando ao teu último romance. A institucionalização de crianças, apresenta números assustadores, no nosso país…

Como já disse, há crianças que não querem sair das instituições. E estão no seu direito. As crianças têm direito a amor e a proteção. Mas o Estado só lhes pode proporcionar proteção. O Estado não nos ama; se o Estado nos amasse não pagávamos impostos (risos). Há crianças que encontram amor e proteção nas instituições onde estão. Encontram aí, via diversas pessoas que lidam com eles no dia-a-dia, linhas de afeto. E isto não está nos números. O que é um número? Um número não é nada! Por isso é que eu gosto da imagem do estádio do Benfica cheio de crianças… O sentimento provocado por esta imagem, o impacto que isto tem em quem se proponha pensar a sério neste problema, é o que me interessa. Reitero: não me interessava nada fazer uma grande reportagem. Importa-me o sentir. Por isso, no decorrer da minha pesquisa, não fiz muitas perguntas. Andei e vi e estive presente. Nós, os que estamos cá fora, é que julgamos que o território afetivo que encontramos numa instituição é menor do que o encontrado numa família tradicional e não é. Tendemos sempre a achar que é menos forte, menos importante, menos qualquer coisa e, muitas vezes, não corresponde a essa verdade. Há miúdos que estão institucionalizados e ainda bem porque na família biológica passaram o inferno. Temos de estar cientes destas situações. Por isso não devemos deixar-nos impressionar pela frieza dos números, muitos menos em cenários altamente condicionados pelo lado emocional, sentimental, afetivo.
Quando reclamas o estatuto de vítima para uma criança, em cenário de violência doméstica, por exemplo, é porque muitas vezes dás de cara com situações limite. Eu acho muito bem poder reivindicar-se o estatuto de vítima para as crianças. Porque quando tu és vítima recorrente, de maus tratos físicos e/ou psicológicos, tens de sair dali. Quando vês o teu pai a bater na tua mãe e a tua mãe a bater no teu pai, não interessa, agora; é esse ambiente, essa circunstância que te vai marcar profundissimamente e para toda a vida. E atenção, não são apenas os pais a tratar de criar estes infernos. As mães também batem e também são protagonistas de casos monstruosos. A nossa sociedade está, como sabemos, cheia de estereótipos. Aqui também os há. Há mulheres violentíssimas com os seus filhos.

 

No livro, encontramos a pergunta: o que é uma mãe?

Sim. E qual mãe? A mãe ideal? A nossa mãe? De que relação estamos a falar? É preciso estar aberto a estas e outras questões quando pisamos este terreno de relações familiares. O que é um pai? O que é uma família? O que é um filho? Este livro abre o caminho a todas estas questões. Quando devolves uma criança, num momento de pré-adoção, o que é que aconteceu?

 

Assim dito – devolves uma criança – é tão impiedoso, cruel…

Cruel é, também, haver famílias que são absolutamente infernais e irresponsáveis e que tratam as crianças de forma desprezível…

 

Este livro deixa-nos a pensar em todas estas questões, tira-nos o chão e deixa-nos, muitas vezes, uma sensação de incapacidade…

Tentei dar uma visão do quanto nada disto é linear…os relacionamentos não têm uma fórmula para funcionarem…a capacidade de escolha de cada pessoa e a capacidade para atuar mudam, mesmo em circunstâncias iguais ou similares. É isso que me fascina no ser humano. Há pessoas que na infância tiveram histórias terríveis e conseguiram sair e construir uma vida normal e outras que optam por se vitimizarem, sem nenhuma capacidade para dar a volta.

 

Escreves: “M. sempre pensou que o coração não iria sobreviver a tanta solidão, porque a verdade é que uma criança precisa de uma família, ou talvez seja um exagero, uma criança precisa de uma mãe”. És mãe. Essa condição também foi útil para narrar esta história?

Quando imaginamos ser mães imaginamo-nos a melhor mãe do mundo. E afinal sou só a mãe que consegui ser. E, certamente, os meus filhos tem muito de que se queixar. Não consegui, nem conseguirei resguardá-los da dor, da possibilidade da dor na vida de cada um. E olha que dei tudo o que sabia para os proteger; fiz o que estava ao meu alcance, nas minhas circunstâncias, para lhes dar momentos de felicidade. Houve de tudo: bolos, legos, conversas, tempo para eles. E sabes uma coisa? Uma mãe é uma pessoa que falha. Ponto. Eu posso ser solidária com os meus filhos, até na asneira e, às vezes, até fecho os olhos, mas sei que ando longe de ser a mãe que me imaginei. Não há a super-bolha-mãe. Tens de ser honesta contigo própria e assumir isso.

 

Apesar da dor, saímos do livro com alguma paz. A narrativa é aberta e podemos acreditar que M. e S. serão amigos para a vida…
E a amizade é a melhor forma de amor. E ambas as crianças podem construir uma história como a nossa, com coisas boas e coisas más, que terá sempre uma marca. Mas quem não tem marcas? E quem passa por instituições, por exemplo, por um colégio interno, fica sempre com a marca dessa passagem…

 

As marcas psicológicas e a dor atravessam intensamente toda esta história. Aliás, a dor é transversal a todas as tuas histórias…
Eu conheço muito bem a dor. Olho, com frequência, o lado mais brilhante da vida, mas sei bem das dores, das minhas e das do mundo. E, talvez por isso, por ter facilidade em me colocar no lugar do outro, me foi tão fácil vestir a pele daquelas crianças. O que é sentires-te sozinho, o que é sentires-te a menos ou a mais; baralhado ou incompreendido. Tenho muito presente a minha infância, a minha adolescência e o início da minha vida profissional. Situações, geralmente, atravessadas pela dor. Mas sou uma resiliente e serei sempre uma aprendiz. Não dou graças por um copo meio cheio nem por um meio vazio; dou graças por ter um copo. Mas levei anos a chegar aqui. Vou fazer cinquenta, daqui a nada, e lembro-me de há 9 anos não ter esta clarividência. E depois, a vida também se encarrega de te dar ensinamentos gratuitos. Só tens de estar atenta. Há 17 anos decidi mudar a minha vida por diferentes razões. E apaixonei-me por uma pessoa que é a única pessoa que eu conheço que está de bem com o mundo: o meu marido. A nossa relação é a minha história de sucesso. Apesar de ter nascido em Angola, ter vivenciado situações limite, como a guerra e, ainda assim, sabe relativizar e optar por ser feliz. Aprendi com ele importantes lições de vida, apesar da dor. E aprendi a valorizar o ter à minha volta as minhas pessoas. E as nossas pessoas, como sabes, suavizam as nossas dores.

 

E o que mais atenua a dor?
A esperança e a capacidade de sonhar. Principalmente quando temos a presença constante da dor na nossa vida, como muitos miúdos têm. Então, claramente, o que te salva é a capacidade de sonhar. Lembro-me que, na escola, eu própria era aquela miúda cujos relatórios escolares apontavam o “excesso de imaginação”. Sonhar ou imaginar de olhos bem abertos. Ainda hoje sofro disso! Sou capaz de escrever a história de qualquer anónimo, num instante. É certo que também tenho uma boa intuição e isso ajuda.

 

És feminista. O que entendes por feminismo?

Entendo que qualquer mulher deve ter as mesmas oportunidades de qualquer homem. Se eu tenho as mesmas funções de um homem, em qualquer trabalho, eu devo ser remunerada como ele e não auferir um vencimento menor, apenas porque sou mulher. E vou defender sempre esta ideia de igualdade e de equidade aplicada a todos os campos da vida, quer o sexual, o profissional, o lúdico, todos. Depois, há isto, que é da biologia e é assim: eu nunca vou conseguir pegar num saco de cimento de 50 quilos e ele nunca vai conseguir parir. E estas diferenças, sim, devem ser respeitadas. Ser feminista radical nunca serei, porque não sou radical ou de extremos em nada na vida.

 

E foi assim, nessa direção, que educaste os teus filhos, dois rapazes?

Pois claro que sim. Eles sabem fazer tudo: cozinhar, colocar a roupa a lavar, por a mesa, tirar a mesa. Ensinei-lhes todas as tarefas domésticas tal e qual tivesse educado, nessa matéria, uma menina. Aliás, um deles, ainda bem pequeno, queria um bebé e eu fui-lhe comprar um Nenuco. Há questões, simples como esta, que são profundamente culturais e estão de tal forma enraizadas que nos cortam a liberdade de ação. A própria escolha de brinquedos, a opção por esta ou por aquela cor condicionam, ainda, muitas decisões de pais e de mães. E nós, pais e mães, temos grande responsabilidade na educação dada aos nossos filhos, na esfera da igualdade de direitos e de deveres. Eu tive esta preocupação desde que eles eram muito pequeninos. Como sabemos, as crianças aprendem também pelo exemplo.

 

Tens um irmão. A vossa mãe também teve esse cuidado?

De certa forma, sim, apesar de estarmos a falar de uma outra geração. No entanto creio – e é uma coisa muito minha, das minhas observações e leituras – que as mães protegem muito mais os filhos rapazes, quando também há meninas. Creio que há ainda uma certa ancestralidade nisto tudo que leva à proteção do filho barão. Havendo esta consciência, também há maior possibilidade de contrariar essa conduta. Não é o meu caso, até porque o meu irmão é dois anos mais novo. E os meus pais foram pais mesmo muito cedo; quando, talvez, estariam preparados para serem pais, foram avós. E são uns avós espetaculares. Por isso, há aqui fatores muito atípicos no que concerne a todo o processo educacional de que fui alvo. De qualquer forma, considero que fiz uma rutura com velhos paradigmas.

 

E por falar em velhos paradigmas, também o facto de teres dois rapazes…

Quando o segundo nasceu, alguém me disse: ó coitadinha, não vais ter quem cuide de ti na velhice! Como se cuidar fosse exclusiva responsabilidade das mulheres. Estamos envoltos, desde há muitos séculos, em películas finas e resistentes que travam a mudança, que a demoram e por isso é tão difícil mudar certas formas de pensar que levam a certos modos de agir, de educar, de viver. A família é muito importante e tem de ser um lugar de profunda compreensão mútua e de respeito. Independentemente se rerem rapazes ou raparigas, homens ou mulheres é preciso ter a noção de que as famílias também mudam, a sua composição muda, mas o ser humano continua lá, a necessitar de atenção, afeto e, reitero, respeito.

 

E os modelos familiares são cada vez mais diversos…

Coexistem cada vez mais, na nossa sociedade, diferentes “tipologias” familiares. Das mais tradicionais, às monoparentais e outras. Mas entendo que tudo é confiança e amor quando há respeito. Entendes? Respeito pela diferença, respeito pelas pessoas. É fundamental. Sem isso, não temos nada.

 

Em “A Construção do Vazio”, abordas relações familiares bem difíceis…

É verdade e mais uma vez ando à volta da construção de uma identidade. E abordo a facilidade com que a agressão entra nas relações. Hoje em dia preocupa-me muito a relação que se constrói nos casais mais jovens. A violência no namoro, por exemplo, é um tema que deve ser levado para dentro das escolas e para dentro do diálogo familiar. Devemos falar, expor, debater este problema que afeta muitos adolescentes.

 

O que mais te preocupa na atualidade?

Tanta coisa. O crescimento dos movimentos extremistas, na Europa. A eleição de Bolsonaros e Trumps por esse mundo fora. Preocupa-me o movimento jihadista, em Moçambique, a provocar episódios de extrema violência e a pedir a intervenção da comunidade internacional. E pouco ou nada se fala disto em Portugal e é assustador. As crescentes desigualdades sociais que grassam pelo mundo e que esta pandemia veio acentuar.

 

Valorizas a memória?

Bastante. Quer a pessoal, quer a coletiva. Esta última tem o poder de nos situar e nos fazer compreender enquanto povo, enquanto humanidade. Ver o que aqui e ali regredimos ou evoluímos. Ver o poder que a igreja evangélica tem, por exemplo, no Brasil, é extremamente preocupante. A memória de factos religiosos, políticos, sociais e outros faz-nos compreender a história contemporânea e isso é crucial para o nosso entendimento, enquanto parte de um todo.
As memórias pessoais, quando são boas, são muito reconfortantes. O meu tio-avô, com quem vivi, era pintor e usava aguarrás nas suas lides. Quando sinto este cheiro, volto automaticamente aos meus sete anos. Essa memória, que chega pelo olfato, é uma viagem no tempo. O mesmo acontece com algumas músicas. Têm o poder de nos transportar.

 

Quando estamos a beirar os 50 anos, começamos a pensar mais na morte?

Aos 44 anos perdi um amigo. Tínhamos ambos essa idade. Deixou dois filhos, um rapaz e uma rapariga, da idade dos meus filhos. E a morte dele mudou a minha vida. É terrível, dizer isto assim, cru, sem me alongar muito mais: a morte dele foi-me muito benéfica. O que quero dizer é que desde então eu fiquei com a exata noção de que isto que estou a viver pode acabar mesmo a qualquer momento. Com ele foi assim, de um momento para o outro e comigo também pode acontecer. E esta noção chegou-me muito cedo, muito real. Passei a acordar com mais disponibilidade para fazer de cada dia, um dia melhor; passei a dar o melhor de mim todos os dias.

 

E se acredito na vida depois da morte?

Dificilmente…Não. Adoro ficção científica. E posso imaginar qualquer coisa…E acho que se for uma notícia de 12 horas, já é bom. É tudo tão rápido, tão veloz…

 

Não tens nenhuma fé?

Quando se estuda história das religiões fica tudo mais difícil…posso dizer que tenho uma fé particular. Sou profundamente cristã. Mas também profundamente budista… em alguns princípios. São diversas as questões que te fazem recorrer a uma religião e compreender tudo isto levanta-te muitas outras interrogações. Às vezes sinto uma energia…algo que não se explica… Mas nem tudo tem de ser racional. Não é. O transcendente também nos toca. Há muitos anos fiz uma promessa. Fui confrontada com uma situação e, nem era uma coisa minha; era de uma amiga em apuros, numa situação difícil. Meti-me no carro e segui em direção a Santiago de Compostela e quando dei conta estava na capela de Nossa Senhora do Pilar. [Pilar é também o meu nome, o da minha mãe e o da minha avó] Sempre ouvi dizer que esta Nossa Senhora era minha amiga. Então conversei com ela e falei-lhe do problema dessa minha outra amiga. E prometi que iria lá sempre, se houvesse solução. E houve. E agora vou lá todos os anos, agradecer. E não sei nenhuma oração. Agradeço-lhe de mãe para mãe. Talvez a fé seja apenas uma questão de esperança, um pensamento mágico.

 

Então, de alguma forma, rezas?

Não. Não sei rezar. Se precisar de fazer alguma oração, pego num livro de poesia. Os poetas são as pessoas justas que seguram o mundo.

 

Como te defines, enquanto escritora?

Sou uma colecionadora mental. Não escrevo todos os dias, nem todas as semanas, nem todos os meses. Escrevo quando a cabeça já não comporta mais, transborda e tenho mesmo de verter tudo para o papel. Passa-se tudo na minha cabeça durante muito, muito tempo e depois, há um dia em que me sento e começo a escrever.

 

Algum receio, neste ofício da escrita?

Receio as leituras superficiais, nas redes sociais, por exemplo. É preciso ler em profundidade; ler mais livros; ler as escritoras portuguesas votadas ao esquecimento, por exemplo. O livro tem a grande vantagem de te fazer pensar e a sociedade não evolui se não existir pensamento. E este tempo que vivemos é triste nesse sentido; é um tempo demasiado veloz, de pouco pensamento e temo, também, que a pandemia, agudize o nosso individualismo. E do ponto de vista da construção dos afetos, consegues imaginar seres adolescente, agora? É necessário estar atento ao que se está a passar, nomeadamente nas escolas. Vivemos um tempo dificílimo. Temos de ser perseverantes e não deixar que a dignidade seja mais uma palavra no nosso vocabulário. Tem de cada vez mais, ser uma atitude, um comportamento, uma linha por onde seguimos. É fundamental.

 

E o que gostavas de responder que eu não te tenha perguntado?

Hoje, não me perguntes mais nada. Acho que até falei demais.

Dezembro 18, 2020
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À margem com…
Patrícia Reis
  • Um livro que recomendes?
    Todos os livros da colossal Maria Teresa Horta. Da poesia à prosa. As Luzes de Leonor, por exemplo, é uma obra-prima, levou 14 anos a escrevê-lo. Além da importância de toda a sua obra, estamos a falar de uma mulher singular e porventura a mulher mais saudavelmente feminista que eu conheço. E ainda assim, com tudo o que isso representa, no nosso país, assume o seu lugar, com muita dignidade, apesar de muitos não lho reconhecerem. É uma mulher brilhante.
  • E um filme?
    A Vida Secreta da Palavras,  da Isabel Coixet, mulher incrível que, há muitos anos,  descobri com esse filme. Recomendo a toda a gente. É um filme sobre o entendimento. E, numa vertente bem diferente, Toy Story porque gosto muito de filmes de animação e ninguém pode viver sem o Buzz.
  • Um local que te convide?
    Roma. Roma é recorrente na minha vida. Vou e fico sempre no mesmo hotel. Adoro Roma, é um apelo constante e como já fiz todos os circuitos turísticos, vou lá só para passear pelas ruas e comer gelados e ficar nas praças a observar as pessoas. Vou a Roma e sinto-me em casa. Gosto muito.
  • Um pintor que te inspire?
    Graça Morais. É uma pintura que sempre se focou muito no vigor das mulheres, nomeadamente as transmontanas e eu identifico-me muito com a força que emana da sua pintura. É uma pintora maravilhosa, uma mulher muito inspiradora.
  • Um blog, jornal ou revista que leias sempre?
    Leio jornais, nacionais e internacionais. O El País, por exemplo, tem a melhor revista do mundo ao fim de semana. Sem jornalismo, não há democracia. Temos de valorizar muito o bom jornalismo.
  • Um provérbio ou um poema? Qual?
    Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. Toda a vida disse isto; toda a vida ouvi isto ao meu tio-avô.
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