Trabalha há 23 anos na EAPN Portugal. É diretora executiva da organização. Ainda se lembra do primeiro dia de trabalho?
Sim, claro! Éramos cinco pessoas e hoje somos 35. Recordo que me deram um gabinete e em cima da secretária colocaram uma pilha de diversos documentos europeus para que os lesse. A primeira semana passei-a mergulhada em leituras, nomeadamente sobre políticas sociais e sobre os diversos organismos da União Europeia. Depois de ter assimilado essa informação, a pequena equipa da qual passei a fazer parte começou a desenhar o programa de atuação desta organização. Estou aqui praticamente desde a fundação.
A licenciatura em Serviço Social encerrava alguma ambição, em particular?
Não. Tudo aconteceu muito naturalmente. Eu sou do tempo em que acabávamos o curso e começávamos logo a trabalhar. Não vivi o drama que muitos jovens vivem atualmente. Eu terminei o curso em julho e em setembro, já estava a trabalhar num projeto de luta contra a pobreza, no centro histórico, em Vila Nova de Gaia. Portanto, quando cheguei aqui, a minha pouca experiência de dois anos, enquanto assistente social, era o trabalho direto com as populações. Esse primeiro contacto com o mundo do trabalho teve muito a ver com aquilo que apendi e também com a minha vontade de mudar o mundo. E eu tinha essa convicção e sentia-me empoderada para o fazer. Mas com o passar do tempo, também nos vamos apercebendo das dificuldades de quem está no terreno e, até, das frustrações que isso nos pode trazer por não podermos dar as respostas tão rapidamente como gostaríamos. E isto dá-nos a tal maturidade que vai crescendo ao longo da vida. Entretanto, findos esses dois anos, vi um anúncio de jornal, para uma instituição europeia e, apesar da pouca informação que nos era fornecida, enviei o meu curriculum. Fui chamada para uma entrevista coletiva e, depois, para uma individual… e cá estou! Comecei por assumir a área da informação e formação e, dessa altura, guardo memórias bastantes positivas.
No que reporta a essas áreas, nomeadamente a informação, sentia que havia muito desconhecimento?
Completamente. A informação e a formação foram (e são) dois pilares importantes na estrutura desta organização. Naquela altura tínhamos acesso a informação privilegiada que depois partilhávamos com outras organizações. Atenção que, na altura, não tínhamos internet. Imagino que, para algumas pessoas mais jovens, seja difícil imaginar este cenário. Mas é verdade. Mesmo o volume de correio recebido era absolutamente incomparável ao de hoje. Quando recebíamos uma carta (de trabalho) batíamos palmas. Havia uma enorme panóplia de projetos e programas e nós tínhamos de reunir toda essa informação e sabê-la “na ponta da língua” para depois podermos informar bem outras organizações. Era também uma grande responsabilidade e exigia uma atualização permanente. Mais tarde, passamos a fazer um boletim quinzenal, Flash Rede, com toda a informação que colhíamos e traduzíamos para os nossos primeiros associados. As organizações procuravam-nos muito, nomeadamente autarquias, com o intuito de colherem informação para efetuarem candidaturas a projetos europeus e outras iniciativas. Fomos uma instituição pioneira nesta matéria.
E que outros marcos importantes há neste percurso?
O Sifat, por exemplo, foi um projeto muito importante para dar sustentabilidade à organização, foi esse projeto que nos permitiu a divulgação do nosso trabalho no território nacional, captando associados e lançando a semente para a implantação do que são hoje os dezoito núcleos distritais. Olhando, hoje, para trás, consigo ver todas as sementes que foram lançadas e que originaram a organização que somos. Vejo também que houve uma força muito grande e uma indiscutível vontade de melhorar a sociedade. E é reconfortante perceber que a equipa que tenho hoje, maioritariamente, partilha desta mesma vontade e acredita que podemos ter uma sociedade diferente, onde todos os cidadãos e cidadãs possam usufruir em liberdade de um conjunto de direitos e deveres e serem respeitados. Todos os dias trabalhamos para que as pessoas vivam com dignidade e felicidade. É para isso que trabalhamos e para que não se encarem estas questões como questões individuais mas sim coletivas e como tal necessitamos de reformas sociais e políticas que viabilizem estes objetivos, contribuído para os direitos fundamentais das pessoas. O papel das organizações não-governamentais é essencial – que não haja dúvidas quanto a isso – e a força da sociedade civil organizada, também. Gostava de inspirar, todos os dias, as pessoas que trabalham comigo a acreditar que nós podemos fazer a diferença. Temos essa obrigação porque trabalhamos para as pessoas e de forma muito séria e comprometida.
E como é feita essa gestão, a partir do Porto, para todo o território nacional?
Há todo o peso da gestão de qualquer organização que, muitas vezes, torna os processos mais difíceis. Mas faz parte. Gerir pessoas não é uma tarefa fácil, ainda mais à distância. Mas a partilha de valores inerentes à missão desta organização, que até se cruzam com os valores fundacionais da própria União Europeia, todos partilhamos e todos temos esta noção de trabalho em prol dos outros. O difícil, muitas vezes, são os diferentes níveis de sincronização que precisam de um alinhamento entre todos. Tenho de ter essa visão de helicóptero que é a de observar e fazer o cruzamento da dimensão europeia, com a nacional, com a regional e, ainda, com a local.Estes diferentes âmbitos de intervenção e as diferentes áreas em que atuamos exigem um trabalho multidimensional, com diversas frentes e com diversas organizações. Cada vez mais. E os recursos humanos não são elásticos, são os mesmos todos os anos e, todos os anos, há mais projetos. De qualquer modo, somos uma organização que está sempre aberta a rever processos, a fazer auto-avaliações, a chamar consultores externos para avaliar o nosso trabalho. E, ao fim destes anos, concluo que o caminho se faz caminhando e se faz umas vezes acertando e outras errando. Mas é assim mesmo. O importante é mantermo-nos focados no nosso trabalho.
E há mais momentos basilares da organização, que queira destacar?
Sim. Entre 2008 e 2013, ao abrigo do programa Operacional Potencial Humano, fizemos um trabalho de capacitação de cerca de duzentas organizações de economia social em todo o país. Fizemos formação, capacitação e consultadoria, num total de cinco projetos.
A formação é um ponto forte da organização…
Sem dúvida, e uma das áreas mais reconhecidas, inclusivamente pelos nossos associados. Somos certificados como entidade formadora desde o início dos anos noventa. Tanto a nível europeu, como nacional, mantemo-nos atentos às necessidades do setor e trabalhamos no sentido de ter uma oferta muito qualificada e diversificada, ajustada às necessidades, por exemplo, de cada distrito.
E na investigação, o que salienta?
Temos vários projetos em curso, nomeadamente no atinente ao Horizonte 2020, financiado pela Comissão Europeia. Somos parceiros de um projeto que termina em janeiro de 2019, que envolve 19 parceiros, na sua maioria universidades europeias e organizações não-governamentais. Estamos a tentar perceber qual foi o impacto da crise económica e social que se viveu na Europa na vida dos cidadãos quer do norte, quer do sul da europa. E depois perceber, à luz do Plano Junker e até do Pilar Europeu Direitos Sociais, quais são as prioridades da Europa e qual o verdadeiro entendimento do investimento social e se é ou não necessário reconfigurar esse conceito para ser aplicado na elaboração de políticas sociais. Sairão daqui recomendações importantes para o futuro da Europa social.
Querer falar um pouco da iniciativa sobre rendimento mínimo adequado?
É um projeto da EAPN Europa do qual somos parceiros e que pretende criar uma consciencialização pública do que são os sistemas de rendimento mínimo adequado em toda a Europa e, até, criar uma rede de rendimento mínimo adequado em toda a União e, sobretudo desconstruir estereótipos. Estamos a preparar muitas atividades que reforçam a importância deste tema na vida dos cidadãos .A informação, nesta matéria é escassa e, por isso, “está a caminho” um autocarro que passará por diversos países, nomeadamente o nosso, com uma campanha que visa fornecer conhecimento sobre os regimes de rendimento mínimo que essencialmente são regimes de apoio ao rendimento que proporciona uma rede de segurança para aqueles que não podem trabalhar ou aceder a um emprego digno e não são elegíveis para outras prestações sociais ou, ainda, aqueles cujos direitos a esses apoios, expiraram. Sendo regimes de último recurso, destinam-se a garantir um padrão de vida mínimo para os indivíduos e seus dependentes quando não têm outros meios de apoio financeiro.
Há mais algum estudo que queira referir?
Nós temos muitos. Mas, talvez, referir um que diz respeito à relação entre o acesso à saúde e a vivência da pobreza. Há muitas desigualdades sociais no acesso à saúde e entendemos ser muito pertinente produzir conhecimento nesta área. De facto, até o nosso trabalho direto com as pessoas em situação de pobreza e exclusão nos remete para a necessidade de encetar este trabalho. Já fizemos um conjunto de entrevistas, em todos os distritos, e, no momento, estamos a entrevistar alguns atores ligados ao Sistema Nacional de Saúde. Para o ano temos como meta divulgar os resultados deste estudo nacional de onde sairão recomendações que vamos fornecer a quem tem intervenção nas políticas de saúde em Portugal.
E na área das comunidades ciganas, o que está a acontecer?
Fomos convidados a participar num outro projeto europeu – Roma Civil Monitor – que agrega mais de 90 organizações e resumidamente consiste em fazer uma avaliação/monitorização das estratégias nacionais para a integração das comunidades ciganas, a partir da visão e das associações da sociedade civil. Pretende-se, entre outras, focar as questões da educação, formação e acesso ao emprego e à habitação.
E na área da empregabilidade?
Temos o Clik, um projeto que ativa competências para a empregabilidade, em parceria com o IEFP, e que já dinamizamos há quatro anos. Tem uma metodologia de intervenção muito interessante e uma enorme capacidade de se autocriticar, autorrever, autoavaliar a todo o tempo e por isso se está sempre a ajustar para produzir a sua eficácia e atingir as suas metas.
É muito interessante perceber a importância da participação no trabalho desenvolvido pela EAPN Portugal, chamando as pessoas implicadas a participar do processo, na resolução do seu próprio problema…
Por força do nosso trabalho a nível europeu, dar voz às pessoas que vivem ou vivenciaram situações de pobreza, é uma prática corrente. A nível europeu já organizamos dezasseis encontros. Em Portugal começamos, também, a fazer o mesmo e o resultado tem sido extremamente válido. Entendemos que lhe devíamos dar um carácter de continuidade, retirando-lhe o carácter pontual e, até, de “instrumentalização de pessoas”. Para a nossa organização o que faz sentido, de acordo com a nossa missão, é que estas pessoas tenham um papel ativo na vida da nossa organização.
Recordo-me que, em 2001, colocou-se o desafio de a EAPN Portugal organizar o primeiro encontro de pessoas beneficiárias do rendimento mínimo garantido e, em tempo recorde, organizámo-lo, na Batalha, reunindo cerca de 150 pessoas que vieram de todos os distritos do país. Foi uma experiência totalmente nova que gerou o conhecimento necessário para nós e outras organizações prosseguirmos o nosso trabalho nesta área. Foi uma aprendizagem, uma tomada de consciência colectiva do impacto desta medida na vida das pessoas. E deste encontro saiu, ainda, a iniciativa de os nossos núcleos distritais criarem grupos de pessoas que experienciem ou tivessem experienciado situações de pobreza e exclusão social. Para isto também chamamos a nós outros parceiros, como os municípios, por exemplo, dando-lhe conta da nossa iniciativa de pretendermos trabalhar estes fenómenos com os próprios intervenientes, com as pessoas que, de facto, vivem ou viveram estas situações.
E como se deu esse processo, de um e do outro lado?
Foi uma enorme aprendizagem de parte a parte. Tanto da parte técnica como das próprias pessoas que foram chamadas a participar e que não estavam habituadas a ser ouvidas e a colaborarem na resolução do seu próprio problema, através desta metodologia.
Da parte dos técnicos a disponibilidade para as pessoas teve de ser ampliada, pois este trabalho pede uma grande recetividade, uma enorme consciência de que, muito lentamente, estamos a trabalhar na alteração da sociedade que queremos ter no futuro. É um trabalho singular, raro.
É muito diferente de fazer um estudo, uma investigação, organizar uma ação de formação. Tivemos de lhes explicar muito bem qual a nossa intenção, explicar-lhes a forma de como a participação deles podia ajudar a, por exemplo, ajustar as políticas sociais. Porque não é fácil chamar estas pessoas e dizer-lhes que não lhes vamos dar pão, não lhe vamos dar um subsídio; vamos, sim, dar-lhes a oportunidade de uma verdadeira participação cidadã. Não sendo, como referi, uma intervenção convencional, estamos a formar estas pessoas passando-lhes informação, dando-lhes a oportunidade de uma participação efectiva e para isso elas necessitam de conhecimentos, de tomar consciência de como se dão estes processos, de como este é um trabalho moroso. mas de indiscutível utilidade. Aliás, fizemos, recentemente, um vídeo sobre participação e, sem ensaios, sem nada, as pessoas passaram o seu testemunho genuíno e espontâneo de como tem sido fazer este percurso connosco. E nós sentimos esse reconhecimento e continuamos absolutamente empenhados neste trabalho. Aliás, há dois anos, modificamos os nossos estatutos para que pudéssemos ter uma nova categoria de associados, os associados por inerência que são exatamente estas pessoas, as pessoas em situação de pobreza e exclusão social. Não pagam quotas mas tem direito a voto como qualquer outro associado.
São estas pessoas que formam os Concelhos Locais de Cidadãos (CLC) e o Concelho Nacional de Cidadãos (CNC)
Isso mesmo. Os CLC são grupos de pessoas reunidas por distrito, movimentos de cidadania conscientes e empenhados neste trabalho de participação e o CNC é composto por um representante de cada CLC. Reúne quatro vezes por ano e trabalha, por exemplo, no desenho do programa do Fórum Nacional de Pessoas em Situação de Pobreza e Exclusão Social que organizamos todos os anos, por ocasião do Dia Internacional para a erradicação da pobreza (17 de outubro). Não só fazem a avaliação do programa do ano anterior como também já preparam o seguinte. A equipa técnica que os acompanha usa metodologias que permitem não só a sua motivação como também a colaboração efetiva e válida com ideias e levantamento de questões extremamente válidas para a reflexão dos problemas. Para além deste trabalho são as pessoas que vivem em situação de pobreza e/ou exclusão, cada vez mais, que assumem a logística do encontro participando na própria organização do evento. É um trabalho que, só mais recentemente, tem dado frutos visíveis. Apesar de ser um trabalho desenvolvido já há muitos anos, é um trabalho “subterrâneo”, moroso, cujo resultado implica, em primeiro lugar, persistência e determinação.
Em 2010, o Prémio dos Direitos Humanos, ganho pela organização é também o reconhecimento deste e de todo o trabalho feito há mais de 25 anos na luta contra a pobreza e a exclusão social em Portugal…
Sim. Esse ano foi marcante. Foi o Ano Europeu de Combate à Pobreza e à Exclusão Social e termos recebido esse prémio, sem sequer nos termos proposto a ele, ou seja, foi decidido por quem o atribuiu, foi muito lisonjeador e animador. E uma surpresa, também. Nesse ano, tínhamos, no terreno, 18 projetos que implicavam uma forte rede de parceiros, nomeadamente 140 autarquias, se a memória não me falha e, no fim do ano, fomos surpreendidos com esse prémio, tão especial de reconhecimento do nosso trabalho.
E porque é que é difícil, no imediato, perceber o que é que a EAPN Portugal faz?
Talvez por não assistirmos as pessoas no que é mais comum: oferecer alimentos ou vestuário ou até mesmo dar subsídios. E, provavelmente, por não trabalharmos, diretamente, com a população mais idosa, ou com crianças. Esse é o lado mais visível e imediatista. Mas, de modo nenhum, é o nosso entendimento do que é lutar contra a pobreza e a exclusão social. Nós trabalhamos para a reforma de políticas, instituições, fazemos lóbi, produzimos conhecimento, trabalhamos para que no futuro a pobreza e a exclusão social, possam mesmo ser erradicadas. O nosso trabalho é multifacetado, muito complexo e abrangente. Mas o certo é que os fenómenos que combatemos, também o são. Por isso as nossas respostas se centram mais numa perspetiva de atuação nas causas estruturais da pobreza e da exclusão, pois acreditamos que só assim, podemos contribuir para a mudança das políticas, e ter um impacto decisivo no combate a estes fenómenos. Engraçado que, até a título pessoal, nos primórdios, sentia essa dificuldade quando amigos e familiares me diziam: explica lá o que é que a tua ONG faz?
Mas isso foi há 23 anos. Já mudou muita coisa, como reparamos…
Sim, agora, já não temo essa pergunta nem por parte da família, nem de ninguém. (risos). A sociedade já tem outros modelos de organização; as pessoas já tem outra visão do trabalho das IPSS e das ONGs, a própria sociedade civil já criou novos mecanismos de intervenção, já foi adquirida outra consciência dos problemas sociais e da forma de os combater. Hoje em dia já há outra abertura para perceber novos conceitos e compreender o próprio trabalho em rede que nós próprios, desde muito cedo, protagonizamos.
E atualmente, para além desse trabalho em rede, que até nomeia a organização, há também o trabalho apoiado nas redes sociais, que deram e dão uma nova visibilidades às instituições de economia social…
É verdade. Temos acionadas, desde 2009, diversas redes sociais onde damos a conhecer o nosso trabalho. Aliás, convido as nossas leitoras e os nossos leitores a juntarem-se aos mais de 10 mil seguidores que temos no facebook institucional e, mais recentemente, no twitter. É também uma forma de ficarem a conhecer o que fazemos e de acompanharem todas as nossas atividades.
Frequentemente levam a cabo diversas campanhas de sensibilização. Mencionar alguma em especial?
Temos várias e, ultimamente, algumas direcionadas à sensibilização da população em geral relativamente aos preconceitos existentes contra as comunidades ciganas. A deste ano, realizada em parceria com a Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, contou com o apoio de duas figuras públicas relevantes e teve bastante impacto. E outras, no âmbito do Dia Internacional da Erradicação da Pobreza. Temos feito diversas campanhas e usado todos os nossos meios para as impulsionar: o site, o blog, as redes sociais, todas essas ferramentas de comunicação são importantíssimas para vincular as mensagens que entendemos ser pertinente passar.
Como é que a EAPN Portugal entende o conceito de investimento social?
Hoje em dia fala-se muito de investimento, nomeadamente, o social e este, na nossa perspetiva, passa pelo investimento nas pessoas. Uma medida de investimento social tem de estar refletida num conjunto de opções dadas aos cidadãos para que estes, de forma livre, possam optar pelo que mais valorizam. Aqui entramos, um pouco, na teoria económica, defendida por Amartya Sem (the capability approach) que se centra no valor dado à capacidade de cada individuo, enfatizando a importância das liberdades reais na avaliação das vantagens; abordando as diferenças individuais na capacidade de transformar recursos disponíveis em atividades de valor; enfim, procurando um equilíbrio de fatores materiais e não-materiais na avaliação do bem-estar humano, demonstrando preocupação com a distribuição de oportunidades dentro da sociedade. Tudo isto e muito mais nos interessa quando falamos de investimento social. E o que muitas vezes acontece com as pessoas que estão em situação de pobreza e exclusão é que o leque de opções é muitíssimo reduzido. Ou compras os medicamentos ou comes a sopa ou pagas a renda da casa! É isto e é muito pouco! Por isso, e para nós, o cerne de uma política de investimento social é dar às pessoas condições para que exerçam a sua liberdade no momento de optarem. Ora isto é muito radical, muito ousado, em comparação com outros modelos de investimento social. E, talvez por isso, não seja um conceito suficientemente interiorizado e difícil de passar aos políticos e a outros interventores. Nós estamos, por exemplo, a trabalhar este conceito, com a academia e outros parceiros, a nível europeu, através do projeto Re-invest. No seu término, contamos reunir um conjunto de recomendações políticas que possam contribuir para acionar algumas mudanças fundamentais.
Como é dedicar toda uma vida laboral a uma só organização?
É preciso acreditar muito para se entregar metade de uma vida a uma instituição. Tendo família, como eu tenho, com o passar dos anos, temos a clara noção de que muitas vezes cedemos muito do nosso tempo preterindo momentos familiares. E decidi fazê-lo com consciência de que estava a fazê-lo…e, agora, de repente veio-me à memória um episódio…eu tenho duas filhas que nasceram no decorrer deste meu percurso profissional. Uma tem 20 anos e outra, 19. Ao longo deste tempo, evidentemente, eu tive de conciliar a maternidade com o meu trabalho. Quantas vezes saí de casa às seis da manhã e regressei à meia-noite. E isto acontece durante um longo período de tempo, nomeadamente, na consolidação dos núcleos distritais. Este trabalho é como gerir dois casamentos. Mas, numa das vezes que me desloquei ao estrangeiro, aconteceu algo que me marcou. Uma tinha 3 anos, outra ano e meio e eu tive de sair por 15 dias para o estrangeiro. Ficaram com o pai e ficaram bem, mas quando regressei, foi um choque porque a mais nova, recusou-me. Não queria que eu lhe fizesse nada, nem dar o leite, nem mudar a fralda. Tive de a reconquistar. Isto para sublinhar o facto de que a minha vida pessoal está claramente vinculada à minha vida profissional. No entanto, devo dizer que sinto a solidariedade familiar todos os dias. De facto tenho uma família que me apoia muito.
Quais são as mudanças de maior impacto ao longo destes anos?
Em primeiro lugar, aponto as mudanças tecnológicas. Eu lembro-me que quando comecei a trabalhar aqui, usávamos o fax, não havia o e-mail! Hoje eu recebo cem e-mails por dia e as pessoas cinco minutos depois de os enviarem, estão a telefonar a perguntar se eu já li. Isto era impensável há uns anos atrás. As mudanças foram muito bruscas, e aconteceram no rumo de um caminho muito acelerado, que exige respostas muito rápidas. Quem diz a resposta rápida a um e-mail, diz a um relatório ou a qualquer outro documento ou situação. Tudo apela à rapidez que, muitas vezes, é inimiga da perfeição ou de uma resposta mais ponderada. O tempo, por isso, também mudou muito. Nós não temos nem vivemos o mesmo conceito de tempo.
Outra coisa que mudou bastante foi a dimensão do trabalho em rede. Quando nós começamos, em 1991, ninguém sabia o que era isto do trabalho em rede. Hoje tudo acontece em rede, até as redes sociais se apoderaram da palavra. Mas há 25 anos, quando surge a Rede Europeia Anti-Pobreza, a dizer que fará um trabalho em rede, as pessoas interrogavam-se sobre o que seria isso porque o mais que surgia, como representação mental, era uma rede de pesca (risos). Depois, com a prática, aos poucos, começaram a perceber o que de facto é trabalhar em rede, estar em rede. Hoje há uma outra sensibilidade, mas há ainda muito caminho a fazer. E na luta contra a pobreza, em particular, todos temos a ganhar com este trabalho em rede, multifacetado, transdisciplinar que implica o trabalho conjunto com outras instituições, entidades públicas e privadas, em prol de uma visão integrada da sociedade.
Que ligações faz entre a mulher que tem esta já longa missão laboral, na luta contra a pobreza e exclusão, a cidadã, a mãe, a mulher?
Eu creio que há muitas ligações entre aquilo que eu acredito, pessoalmente, e aquilo que a EAPN Portugal defende. Ao fim destes 23 anos eu já não consigo perceber bem o que influência o quê. (risos) Genuinamente eu acredito no valor da solidariedade, da partilha, acredito no bem comum, valores que os meus pais me passaram e que são fundamentais para perceber a pessoa que eu sou hoje. Eu sou uma pessoa que gosta do que faz, que sempre trabalhou muito, mesmo quando era estudante. Fui sempre uma aluna bastante razoável, uma pessoa que se destacou, mas que se destacou pelo trabalho. E ainda hoje, no meu trabalho, gosto de dar de mim, de me entregar de corpo e alma, de me empenhar. Este é um aspeto que me caracteriza muito e é assim que, creio, os outros também me veem. Quando se é líder, naturalmente, agradas a uns e não agradas a outros, mas há uma questão que me parece que todos percebem em mim, que é a entrega, a dedicação e o sentido de responsabilidade.
Eu trabalhei para aquilo que tenho e aqui na EAPN Portugal o que veio ter comigo é, de certa forma, o resultado daquilo que também dei e continuo a dar.
E que causas mais a movem, para além da luta contra a pobreza e a exclusão social?
Há a causa das necessidades educativas especiais, até por força de ter uma filha especial que, verdadeiramente, me faz sentir especial todos os dias. Estou muito atenta a esta questão e, por isso, é também uma causa que me move. Há de facto dificuldades muito específicas deste grupo de pessoas, quer cidadãos com deficiência, quer cidadãos com necessidades educativas especiais, como a minha filha mais velha. Eu e o pai, sempre fizemos tudo pela sua autonomia e, claro, continuamos a fazer. Apesar de todas as dificuldades, receios do futuro, tenho com as minhas filhas, que têm personalidades tão distintas, uma relação muito verdadeira, muito genuína, muito aberta e apesar de, muitas vezes, ter angústias com o tempo que não lhes dei, por estar a trabalhar,penso no todo, no apoio familiar que tive e tenho, dos meus pais e dos meus sogros, na presença constante do meu marido. Não há famílias perfeitas e à luz desta constatação, creio que nos temos uns aos outros e todos contribuímos para a felicidade de cada um, aceitando-nos com as nossas diferenças.
Qual a melhor lição que as suas filhas já lhe deram?
Elas ensinam-me, todos os dias, apesar de nem todos serem bons, apesar das dificuldades, que temos bons motivos para nos sentirmos felizes, porque nos temos uns aos outros. O amor de mãe é um amor muito especial.
E a vida, no geral, que ensinamento já passou?
Ensinou-me até por ser fruto da geração nascida em 1969, que temos de nos adaptar constantemente. A minha geração é aquela que, provavelmente, sofreu as mudanças mais radicais, no que diz respeito às novas tecnologias. Sofremos mudanças incríveis entre, por exemplo, o velho telefone fixo e os telemóveis. O grande desafio é sermos pessoas em constante aprendizagem tanto nesta área como em outras. Por isso, ter grande disponibilidade mental para a mudança é fundamental.
E, na atualidade, quais são as questões que mais a preocupam?
Para além da pobreza e da exclusão social, o desemprego e o envelhecimento. Daqui a umas décadas o nosso país será um país extremamente envelhecido, mas isto, infelizmente, é uma tendência europeia que terá de ser revertida. Está tudo ligado, eu sei, mas de facto é preocupante não só o desemprego juvenil como o da faixa 40/50 anos. Nós sempre fomos um país com uma taxa de desemprego relativamente baixa mas, com a crise, agravou-se bastante. E depois, temos ainda o problema do trabalho mal remunerado, do emprego precário, pouco digno. Isso também me preocupa bastante. Temos um grande número de pessoas, cerca de 11%, que estão em situação de pobreza, não conseguem sair do limiar da pobreza, apesar de trabalharem. Isto não devia, de forma nenhuma, acontecer. E Portugal tem este problema estrutural que não consegue resolver.
E soluções?
Aumentar o salário mínimo nacional é uma solução. Tem vindo a aumentar, acabou de ter um aumento, mas não é suficiente. Foi feito recentemente um estudo nacional sobre rendimento adequado em Portugal, onde a EAPN participou, e concluiu-se nessa investigação, que um casal com um filho menor deveria auferir cerca de 1800 euros para ter um nível de vida considerado digno. E por aqui se vê o quanto estamos abaixo do que seria adequado.
Acredita mesmo que é possível erradicar a pobreza?
Acredito. Acredito profundamente que é possível. Mas, ao mesmo tempo, também acredito que os resultados não são para o meu tempo, mas acredito que será possível. A pobreza é um desígnio coletivo, nós acreditamos nisto e, por esta via, também acreditamos na sua erradicação. Temos é de não desistir e continuar a trabalhar.
Gostaria de responder a alguma pergunta que eu não tivesse formulado?
Sim. Gostaria de falar dos recursos humanos. Da minha equipa que, apesar de dispersa por diferentes pontos do país, eu tenho de liderar. De Bragança a Faro, cada núcleo distrital tem de funcionar como um todo, com o mesmo alinhamento, o mesmo compromisso. Apesar das comunicações serem diversas, nada como a comunicação presencial. E motivar uma equipa, diariamente, assim dispersa, constitui um enorme desafio. E, mesmo assim, tenho a felicidade de ter uma equipa qualificada, competente, conhecedora e, na sua maioria, bastante dedicada a esta causa. As organizações são feitas por pessoas e as pessoas fazem as organizações e aqui não são apenas números, são pessoas. Há sempre muito espaço para melhoria, para reforço de competências mas, o certo, é que tenho uma equipa bastante “engajada” com a nossa missão e capaz de dar resposta ao crescente volume de trabalho e aos desafios que surgem constantemente. Por outro lado, somos também uma organização aberta à participação – que aliás defendemos – à criatividade e ao debate de ideias. E o que temos conseguido é fruto de uma equipa comprometida. E é isto que eu quero sublinhar, porque entendo que o reconhecimento nos vitamina.